quinta-feira, 24 de março de 2011

ENTREVISTA COM VICTOR BRECHERET FILHO - Com exclusividade para o site Atibaia Mania, reproduzida aqui no blog do Escultor Rocco.

Victor Brecheret Filho
Em entrevista exclusiva ao Atibaia Mania, fala da vida e obra de seu pai que dá nome ao novo Centro de Convenções e Eventos da cidade, em bonita homenagem feita pela Prefeitura.



VBF: Tenho 67 anos, sou engenheiro civil, mas trabalhei principalmente com energia. De todas as formas, desde projetos e construção de usinas hidroelétricas, planejamento de sistemas energéticos, fontes alternativas, gás natural (fui presidente da Comgás 4 anos), privatização e operação de empresas concessionárias de distribuição, etc. Trabalhei também com projetos e estudos na área de transporte, portos e marinas, além de construção civil. Certa altura, fiz um ano sabático e fiz algumas incursões na área de artes plásticas e cheguei a expor algumas coisas. Porém o choque com tantos anos de racionalidade (engenharia) tornou muito difícil esta convivência. Voltei a trabalhar. Dois filhos (uma médica e um engenheiro) e dois netos.

Victor visitando a Exposição "A Arte indígena de Victor Brecheret"
realizada na Embaixada do Brasil em Tóquio, setembro de 2001.
AM: Qual é a história da sua família em relação à Atibaia? Perguntamos isso, pois há um raro afresco de seu pai na capela da Fazenda Pararanga.

VBF: A relação de meu pai com Atibaia se deve a alguns amigos dele, em especial Dr. Claudino do Amaral, filho do Dr. Zeferino do Amaral e Dona Evelina, atibaienses da gema. Eles tinham umas fazendas na região, próximas da Usina Elétrica e da Usina de álcool dos Matarazzo e, se bem me lembro, seguindo por um bairro retirado, de nome Caetetuba, mais ou menos na direção de Bragança. Estas fazendas eram vizinhas às dos Pires de Camargo (Fazendola) e do José Pires (Fazenda São Bento). Este Dr. Claudino era uma figura extraordinária, muito simpático e brincalhão, que nos convidava junto com muitas outras pessoas e crianças para passarmos todos os anos, quinze dias na primeira semana de julho. Era uma alegria imensa, férias de verdade. Já faz tempo. Cinqüenta e cinco a sessenta anos. Não havia a Fernão Dias, a estrada era de terra, e para mim, a aventura de férias na fazenda começava na viagem, tão esperada o ano todo. Meu pai, com sua alma de artista, era um apaixonado pela paisagem e pela vida bucólica do campo, da lavoura de café, da criação de gado, e das gentes que lá moravam. Como a esposa do Dr. Claudino, a quem chamávamos de Tia Glorinha era muito religiosa, às tantas se decidiu construir uma Capela, naquele ambiente quase religioso, quase franciscano, entremeado de natureza e animais. Meu pai fez o projeto e toda a decoração. Era bem rústica, bem campestre. Aliás, meu pai tinha uma grande admiração pela figura de São Francisco, sempre às voltas com animais. Deve ter se inspirado nele para criar a Capela. Pintou um mural, e esculpiu o Crucifixo, a Nossa Senhora com Menino, escultura esta que ficava do lado de fora. Meu pai faleceu em 1955. Depois a família do Dr. Zeferino e os filhos resolveram realizar uma missa, para tornar a Capela uma igreja oficial. Ela estava subordinada à Diocese de Bragança, cujo Bispo não era muito “moderno” e não permitiu a missa com aquele mural, tão diferente das pinturas usuais das igrejas. E não teve jeito. Depois de longo tempo e muita insistência, foi preciso colocar uma enorme cortina para cobrir o mural quando dos atos religiosos...Após a morte de meu pai, voltei à Fazenda Pararanga (este era o nome) algumas vezes. Porém o tempo afeta a todos, e também morreram os amigos de meu pai, as terras foram divididas entre os herdeiros, partes foram vendidas e apesar da amizade, acabou-se o encanto da infância, das lembranças boas e fortes, das personalidades que lá conosco curtiam aquela primeira quinzena de julho...




AM: Você sabe que o Centro de Convenções e Eventos da cidade leva o nome de seu pai? Já participou de algum evento nesse local?
VBF: Quando algum lugar, ou alguma viagem ou um momento “único” nos marca de maneira especial, é bom a gente não procurar repetir, pois quase com certeza vai se frustrar. Assim, não mais voltei à Atibaia, tão querida de minha infância. Sei que recentemente a cidade construiu o Centro de Convenções e Eventos Victor Brecheret. É muito emocionante e muito lisonjeiro para mim, mas acho que está mais ligado ao conjunto de sua obra do que aqueles períodos mágicos que passávamos na Fazenda Pararanga. Meu pai gostava tanto de lá que pensava em comprar uma pequena propriedade vizinha, mas não deu tempo. Conheço o Centro de Convenções e Eventos apenas por fora, pois o dia que lá passei, estava fechado.
AM: Você se lembra do seu pai trabalhando? Acompanhava de perto os momentos em que ele esculpia?
VBF: Lembro-me bem. Meu pai era uma figura muito especial, calada, taciturna, trabalhadora ao extremo, incansável. Como ele morou muitos anos na Europa, (França e Itália), absorveu o método da escola clássica, e que é preciso ser rigoroso ao extremo, não dá para, em arte, cortar caminhos. É preciso conhecer as técnicas em profundidade, anatomia, desenho, enfim os fundamentos. Ele casou-se tarde e quando morreu, eu tinha treze anos. As minhas lembranças estão muito nos grandes galpões no Ibirapuera, onde estavam as maquetes e blocos de granito do futuro Monumento às Bandeiras. Naquele tempo o local estava cercado por um imenso tapume, e não havia nem as avenidas e nem o Parque do Ibirapuera, cuja inauguração se deu em 1954 por ocasião do Quarto Centenário da Cidade. Lá dentro dos galpões estava também o gesso em escala 1 para 1 do Monumento à Caxias, que depois foi fundido em bronze no Liceu de Artes e Ofícios. Esta é uma figura imensa. Basta falar que quando do término da fundição, antes de ser colocado em cima do pedestal onde se encontra, foi realizado na barriga do cavalo, um banquete de comemoração pelo governador do Estado, com 50 pessoas! Outras estátuas públicas também lá estavam também em gesso. Meu pai tinha lá dentro uma sala que era o seu atelier de trabalho, de criação, fisicamente separado das outras grandes peças, mas tudo compondo um ambiente felliniano. Era muito silencioso, tinha muitos pombos que ficavam arrulhando o tempo todo. Tudo muito especial. Ele era um artista integral, um escultor. Desenhava muito, estudava muito as suas composições, era um apaixonado pelo Brasil, pela imensidão deste pais. Naquela época aconteciam diversas entradas nas regiões do Brasil Central, onde hoje é o Xingu e proximidades. Aquelas excursões dos irmãos Vilas Boas e outros expedicionários o emocionavam muito. Aqueles contactos com tribos desconhecidas, aquelas aventuras, tudo isto se refletiu na sua fase indígena, repleta de natureza, de brasilidade. Posteriormente os dramas amazônicos, em particular a fascinante ilha de Marajó com seus búfalos selvagens, também o inspiraram e, nas suas últimas obras, este tema está muito presente. Meu pai, órfão, porém já com sua vocação muito bem definida, estudou no Liceu de Artes e Ofícios e em seguida, no início do século XX aos 17 anos, voltou à Itália para continuar a sua formação artística. Por não ter um diploma oficial italiano não pode cursar a Academia de Belas Artes, e assim ele foi trabalhar com aprendiz de atelier de diversos escultores da época. Foi uma vida muito difícil. Fico pensando como ele sobreviveu e venceu. Conseguiu superar as dificuldades e influencias e foi para Paris, onde, em contacto com os grandes nomes da escultura e da pintura, absorveu o ambiente da revolução cultural e artística que lá ocorria. São desta fase algumas de suas obras, hoje mais consideradas e valorizadas. Em 1919 produziu a peça “Eva” que foi exposta em Roma e em 1921 foi mostrada em São Paulo, sendo considerado um marco inicial na ruptura modernista. Brecheret participou intensamente da Semana de Arte Moderna de 22 que aqui aconteceu e revolucionou o ambiente artístico e cultural da então provinciana São Paulo. Participou à sua maneira: silencioso, calado, suas estátuas deslumbrando e falando por si.

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AM: Uma das obras mais conhecidas dele, o “Monumento às Bandeiras”, de enormes proporções, levou duas décadas para ser concluído. Você pode falar um pouco sobre isso? (quando começou, onde foi feito; lemos que antes houve um desenho, uma maquete, que havia uma pedra fundamental, enfim, você pode descrever um pouco essa fase?)
VBF: O Monumento às Bandeiras, na verdade, surgiu de uma disputa entre o recém formado grupo de artistas modernistas, empenhados em revolucionar o ambiente político e cultural de São Paulo no qual Brecheret já se integrara, e a colônia portuguesa que resolvera homenagear o Brasil pelo Centenário da Independência, disputa esta que se deu em 1920. Esta situação se arrastou por longo tempo, envolvendo também o poder público, verbas, patrocínios, iniciativas, localização, sendo que somente em 1936 as obras foram iniciadas. Neste período, a arte de Brecheret evoluiu de forma dramática, como conseqüência de seus trabalhos e longos períodos passados na Europa, resultando em novas idéias e conceitos para o Monumento. Assim a Maquete inicial de 1922 sofreu enorme evolução, sendo substituída por outra, muito mais avançada, liberta da influencia da arte escultórica européia da primeira década do século, enfatizando a temática nacional e a formação dos povos brasileiros, mistura de índios, portugueses, negros. Foi definido o local e as obras se iniciaram. Os barracões foram construídos. Neles, a maquete inicial foi sendo ampliada e as formas tornaram-se definitivas. Foi feita então em barro, em escala um para um a escultura original, em uma posição lateral e paralela à definitiva. Em seguida, ao lado, também paralela, foi feita em gesso, copiado do original em barro, a moldagem para a execução dos trabalhos de cantaria, isto é a lavratura em granito. Neste modelo em gesso são fixados pontos para os sistemas de coordenadas espaciais, pontos estes que têm correspondência com pontos identicamente definidos nos blocos de granito. Este sistema de coordenadas espaciais tem ponteiros que vão indicando o quanto se precisa cortar da pedra para chegar próximo à forma desejada. Esta primeira lavra bruta era feita por operários especializados, em sua grande maioria, portugueses, denominados canteiros, (que executam trabalhos de cantaria). Os blocos já pré-esculpidos eram então encaixados, formando o monumento em sua posição definitiva. Novamente meu pai então fazia o acabamento final. Um trabalho hercúleo. Mas não era tudo. A luta com a falta de verbas, as interrupções, burocracias, descontinuidades políticas e administrativas, eram por vezes muito mais difíceis de lidar. Finalmente, em 25 de janeiro de 1953, um ano antes do Quarto Centenário, o Monumento Das Bandeiras é inaugurado. Quase trinta e três anos após a concepção inicial. Os barracões são demolidos às pressas, e muitas das obras inacabadas ou gessos intermediários foram doados por meu pai, pois não se tinha o que fazer com elas. Alguns amigos ficaram com muitas esculturas. Lembro-me bem, de um caminhão da Metalma, que era uma empresa do Ciccilo Matarazzo retirando diversas peças e maquetes. O Cicillo era um grande incentivador das artes no Brasil, criador das exposições Bienais, do MAM e de outros.



AM: E sobre o “Duque de Caxias”? O processo de criação/trabalho foi o mesmo? Havia um padrão de procedimento ou cada obra tem sua característica?
VBF: O Monumento ao Duque de Caxias também surgiu de um concurso público, porém a liberdade artística estava mais contida. Tratava-se de homenagear uma figura muito importante em nossa história, figura máxima do Exército Brasileiro. O processo escultórico foi o mesmo, desde a confecção das maquetes até o gesso em escala um para um. Nesta etapa, foram feitos moldes para fundição em bronze. Estes moldes foram então levados para o Liceu de Artes e Ofícios e fundidos em partes. Estas partes foram depois juntadas e soldadas, e depois a estátua pronta foi içada até o local, no alto do pedestal. Este monumento também sofreu os entraves burocráticos e administrativos, sendo que a localização definitiva foi muito mais complicada e mal resolvida. Era para ser localizado em diversas possibilidades, como a antiga Praça das Bandeiras, onde hoje está a Câmara dos Vereadores de São Paulo, de frente para o vale do Anhangabaú. A localização atual foi definida na ocasião porque havia estudos e diretrizes para a área dos Campos Elíseos, apontando para uma revitalização da cidade nesta direção. Parece que agora, após tanto tempo, este eixo de recuperação urbana vai ser finalmente retomado.
AM: Qual é a sua obra preferida?
VBF: Convivi com as obras de meu pai, de sua última fase, aquela cujos temas ainda estão muito atuais. A fase indígena e amazônica, que tem tudo a ver com a questão atual do meio ambiente, destruição das florestas, povos indígenas, etc. Há também uma série de figuras religiosas, que são de uma muito forte expressão. Meu pai não era um homem religioso, mas realizou belíssimas figuras de São Francisco, Cristos Crucificados, Santa Ceia. Algo deve tê-lo tocado na sua inspiração. Existem peças belíssimas da fase parisiense, peças em mármore, art-déco. Mas sem dúvida o mais pujante e cada vez mais atual Monumento das Bandeiras. Cada vez que eu passo por lá, e moro perto, não deixo de admirar. Cada vez gosto mais. E claro, a Capela da Pararanga com seu envoltório emocional (para mim).

AM: Há outros afrescos/pinturas ou só o de Atibaia?
VBF: Ele fez muitos desenhos, mas desenhos de escultor, com poucos traços, estudos para suas obras. Não pintava. Realizou poucas pinturas murais e afrescos. Era basicamente um escultor. A sua linguagem era a das formas.
AM: Quer deixar alguma mensagem para o povo de Atibaia?
VBF: A Atibaia que eu conheci certamente não existe mais. Cresceu, integrou-se à megalópole. Sofre dos males e desafios das grandes cidades brasileiras. É preciso que os atibaienses e quem mais ela freqüenta, tenham consciência de preservação e valorização. Deveria conter expansões e tentações imobiliárias. Apesar desta proximidade perigosa com a “grande São Paulo”, ainda é uma jóia a ser preservada.

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